Hoje, 21 de setembro, mais uma vez, como indica a tradição, o primeiro discurso na Organizações das Nações Unidas (ONU) cabe ao Brasil e, por isso, novamente, o Presidente Jair Bolsonaro ocupou a tribuna para suas considerações. Antes, porém, de deslindar sua fala, cabe, ainda que breves, algumas poucas observações acerca da comitiva presidencial em solo norte-americano.
O Prefeito de Nova York, Bill de Blasio, chegou a afirmar, referindo-se a Bolsonaro, que “se você não quer se vacinar, nem precisa vir”, sem saber que o presidente brasileiro lá estava. Depois, nas redes sociais, Blasio marcou Bolsonaro num post indicando locais de vacinação contra a Covid-19.
Após o prefeito, chegou a vez do Primeiro-Ministro Boris Johnson, da Inglaterra, que questionou se Bolsonaro já havia sido imunizado, ao que o brasileiro respondeu que não. Johnson aproveitou para fazer propaganda da vacina da AstraZeneca, desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford.
Tem mais. Sem poder entrar nos restaurantes sem comprovante de vacinação, o presidente brasileiro e seus acólitos fizeram foto comendo pizza na calçada. Obviamente, que a foto objetivava mostrar um presidente humilde, cioso dos recursos públicos, tal como já havia feito anteriormente. O Deputado Eduardo Bolsonaro foi vaiado em uma loja e saiu aos gritos de “you are a shame” (Você é uma vergonha – para o Brasil).
Por fim, Bolsonaro e os seus chegaram para um jantar e foram vaiados, na entrada e na saída, todavia, já no interior do veículo se retirando do local, o Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, num gesto obsceno, como o dedo do meio, dirigiu-se ao grupo de manifestantes. Certamente, depois de ter, no Brasil, suspendido a vacinação de adolescentes, após um “sentimento” de Bolsonaro, Queiroga assume importante posição no pelotão ideológico bolsonarista. E, pasmem, isso tudo, em NY, em menos de 48 horas…
Já na Assembleia da ONU, Bolsonaro, em seu discurso, inicia afirmando que traria um Brasil diferente, diferente daquele retratado pelos jornais e pela televisão. De fato, o presidencialismo de confrontação bolsonarista elege, sempre, um inimigo e a mídia, quase sempre, está no pódio dos ataques. Iria, ainda, apresentar um Brasil sem corrupção, cujo presidente é temente a Deus, respeita a Constituição, a família e é leal ao seu povo. No mais, a sua presidência salvou o Brasil que estava à beira do socialismo, segundo seu entendimento.
O novo Brasil bolsonarista, ainda segundo o presidente, recupera a credibilidade perante o mundo, até porque os investidores encontram tudo o que almejam nestas plagas. Tratou do leilão vindouro do 5G, da agricultura, do meio ambiente e da Amazônia, das reservas indígenas, citou a ditadura bolivariana e, mais uma vez, ressaltou sua política externa séria e responsável.
No que tange à pandemia, nada dito dos quase 600 mil mortos, contudo, voltou à cantilena de que defendeu a economia, a manutenção dos empregos, com a mesma ênfase que defendeu as vacinas. Ainda na dimensão econômica, a inflação, no Brasil e no mundo, seria resultado do lockdown (que não houve) e das restrições sanitárias promovidas por governadores e prefeitos.
Às vésperas da conclusão da CPI da Covid, cujo parecer jurídico encaminhado à comissão é demolidor, o Presidente Bolsonaro assume, ao vivo, para o mundo, a defesa do tratamento precoce ou inicial, de acordo com suas palavras, com medicamentos sem eficácia comprovada. Chegou, até, a questionar o porquê de o mundo não usar esses medicamentos e disse que história trará quem está ou não certo neste caso. A vacina entrou na fala mais uma vez: o presidente afirmou ser contra o passaporte sanitário, pois este pode barrar a entrada ou viagens daqueles que não se vacinaram, à semelhança de Bolsonar.
Já à guisa de finalização, fez menção honrosa à manifestação bolsonarista de 7 de setembro que, para ele, foi a maior da história do Brasil. Tal manifestação, como se sabe, postulava pautas antidemocráticas, mas, na ONU, transformou-se, no bojo de seu discurso, num ato de defesa da democracia, das liberdades e de apoio ao seu governo
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A avaliação dos jornalistas, dos analistas internacionais, dos atores políticos (no Brasil e no mundo) é que Bolsonaro vive numa realidade paralela. Afirmei, alhures, numa entrevista, que havia uma CBNF – Central Bolsonarista de Narrativas Fantasiosas – e esta indicava o caminho discursivo e a prática governamental. O discurso presidencial foi checado e as inverdades, exageros e fatos condizentes com a realidade foram indicados. Houve quem, discutindo a fala presidencial, chegou a asseverar que o famoso “cercadinho” na porta do Palácio do Planalto, havia sido, temporariamente, transferido para NY e que assistimos mais uma das lives bolsonaristas e não um discurso de um estadista
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O ator principal, Bolsonaro, foi para Nova York, mas os militantes do cercadinho não foram juntos, por isso ministros do bolsonarismo raiz fizeram o papel de coadjuvantes. O ambiente seguro e controlado do “cercadinho” não pode ser reproduzido sempre que desejam. Neste universo, a palavra vergonha foi frequente em quase todas as notícias ou análises a respeito da estadia em NY e do discurso presidencial; mas, obviamente, a fala do presidente renderá bons vídeos para as redes sociais bolsonaristas e o universo perfeito da CBNF. Politicamente, vale ressaltar, falar para o seu público, para sua militância, não é um problema gravíssimo, pois Lula e Dilma usaram a ONU para tal finalidade. Melhor seria que, diante do mundo, os temas abordados fossem aqueles de impacto global e, às vezes, um toque aqui e acolá, de temas domésticos.
Em síntese, embora o tom do discurso não tenha sido agressivo, Bolsonaro permaneceu conjugando fake news, pós-verdades e negacionismo. O Brasil, hoje, preponderantemente, rejeita o bolsonarismo e reprova o presidente. Ademais, em todas as projeções de segundo turno para a eleição vindoura, Bolsonaro é derrotado pelos adversários. Saldo extremamente negativo da pandemia, economia deteriorada, inflação, aumento da fome, chances concretas de crise hídrica e energética criam um cenário extremamente desfavorável para o governo em todos os aspectos políticos, econômicos e sociais. E isso não mudará com discursos. Os convertidos, bolsonaristas, continuarão a gritar “mito” e a sociedade brasileira continuará a reprovar o governo e o presidente, ao menos com esta realidade em tela.
Rodrigo Augusto Prando é cientista político. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp