Lavoura destinada à alimentação direta perde espaço para processados e commodities, acendendo alerta da desnutrição até 2030 em vários países; estudo aponta que, em vez de abrir mais áreas, é preciso investir em políticas públicas e em produtividade

Em trabalho de cooperação internacional, a pesquisadora no IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) Andrea Garcia integra um grupo de cientistas que mapeou os 10 principais produtos agrícolas do mundo e sua destinação. A descoberta acende um sinal de alerta para a desnutrição em vários países, mostrando que plantações com uso direto de alimento são insuficientes para cumprir com o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas). A meta diz respeito à segurança alimentar para todas as pessoas até 2030.

O estudo foi publicado nesta quinta, 12, pela revista científica Nature Food, em um contexto de acirramento de disputas pelo uso da terra e pelo uso de culturas no Brasil e no mundo. Entre os autores, além da brasileira, estão pesquisadores da Universidade de Minnesota, da Universidade de Delaware e do World Resources Institute, nos Estados Unidos, da Universidade Agrícola de Jiangxi e da Universidade de Pequim, na China.


Cevada, mandioca, milho, óleo de palma, canola, arroz, sorgo, soja, cana-de-açúcar e trigo são as dez principais culturas globais e representam atualmente mais de 80% de todas as calorias das culturas em colheita. Ocorre que nem todas essas calorias e nutrientes colhidos são usados para consumo direto de alimentos por pessoas.


Desde a década de 1960, mostram os mapas da pesquisa, a fração de culturas colhidas para consumo direto de alimentos diminuiu, enquanto a colheita para processamento (ração animal, xarope de milho rico em frutose, óleos hidrogenados), exportação e uso industrial (etanol, bioplásticos, produtos farmacêuticos) aumentou globalmente. Se a tendência continuar até 2030, apenas 26% das calorias globais colhidas poderão ser para consumo direto de alimentos.

A produção agrícola brasileira voltada à alimentação direta nos anos 60 ocorreu com maior proporção de terras destinadas a esse uso no interior do país – padrão que foi alterado no Brasil na década de 2010, para maior destinação de áreas agrícolas à indústria. Inversão que reflete a onda de commodities, apontam os autores, acompanhando um tipo de produção que antes só aparecia na costa do país. No Centro-Oeste, a lavoura que viraria comida passou a se voltar ao processamento e à exportação. Nas regiões Nordeste e Sudeste, a cultura se direcionou também ao processamento e à alimentação animal.


Em Mato Grosso, a cidade de Nova Ubiratã está em uma das regiões com significativa destinação da produção agrícola de consumo direto para exportação e para alimentação animal. Enquanto a produção de mandioca, item que tem no município 35% da produção destinada à alimentação direta, foi de 1.748 toneladas, a produção de soja, com 1% destinada à alimentação direta, foi de quase 1,5 milhões de toneladas em 2020.

“Nossa mensagem principal é que a expansão agrícola não é a solução para a segurança alimentar mundial. São necessárias políticas muito bem construídas para a intensificação da produção de alimentos e a destinação do que é produzido na agricultura, de forma a garantir a segurança alimentar das pessoas que vivem em todos os países”, diz Garcia.

O aumento da riqueza e a crescente demanda da classe média por alimentos processados, carne, laticínios e outras commodities estão criando uma pressão crescente para que produtores agrícolas se especializem em culturas de alto rendimento, cultivadas para outros usos que não o consumo direto de alimentos. Na medida em que o setor responde às expectativas de consumo, indica o estudo, populações sob insegurança alimentar seguem sendo negligenciadas – especialmente em áreas nas quais a pobreza também se faz presente na vida dessas pessoas, como regiões de África, América Central e Ásia.

A pesquisa estima que pelo menos 31 países provavelmente deixarão de atender às suas necessidades alimentares até 2030, mesmo que todas as calorias colhidas no país sejam destinadas para o consumo direto de alimentos. Entre eles estão África do Sul, Arábia Saudita, Haiti, Iraque e Taiwan. Outros 17 países não serão capazes de atender às demandas alimentares de seu crescimento populacional esperado no mesmo período, o que poderá piorar a insegurança alimentar em suas populações – como Chile, Espanha, Moçambique, Nova Zelândia e Portugal. O Brasil está fora das duas projeções, mantendo-se autossuficiente na produção de alimentos.

“Os mapas podem ser usados ​​para primeiro entender por que fazemos colheitas em todo o mundo e ver como isso mudou e está mudando ainda mais”, comenta o pesquisador sênior na Universidade de Minnesota Deepak Ray, primeiro autor do artigo. “Com essas informações, podemos começar a criar políticas sólidas que atendam às necessidades de segurança alimentar em nível global e local, embora não seja fácil. Mas pelo menos agora temos um ponto de partida para ver a agricultura como ela realmente é”.


Pensar em soluções para a insegurança alimentar global pode envolver a proposta do uso de mais terra para a produção agrícola de alimentos, o que levaria a mais perdas de paisagens naturais e de seus serviços ecológicos e de sustentabilidade, trazendo para a pauta uma outra questão: a da produtividade das culturas.

“A área destinada para produção de comida segue mais alta que outros usos, mas, ao mesmo tempo, é uma tendência de declínio, enquanto outros usos têm tendência de expansão. É interessante olhar a produtividade, ou seja, o quanto se produz por hectare. Isso está relacionado às políticas públicas e ao setor privado. Os usos que não são diretamente para comida têm maior ampliação da produtividade, com indicativo de aumentar ainda mais, o que nos mostra quais são os modelos de produção prioritários aos investimentos hoje”, explica Garcia.


Mesmo que lavouras com uso para alimentação animal possam ter parte das calorias direcionadas à alimentação humana, há uma perda energética de 2,5 a 25 vezes nesse processo, se comparado à destinação direta da produção à alimentação humana. “Muitas dessas calorias destinadas à alimentação animal são transformadas e redestinadas como produtos alimentícios, porém, acompanhados de uma grande perda energética. Assim, não consideramos no estudo como uma destinação direta de alimento”. Garcia reforça a necessidade de revisão de políticas internas, tanto de destinação de produtos agrícolas, como de financiamento de pesquisas em produtividade agrícola de países produtores.


O estudo destaca países conforme o que é produzido em seus territórios e desconsidera dinâmicas de importação e exportação. “Países que são grandes produtores, como no caso do Brasil, têm uma taxa de importação que é relativamente baixa para apresentar algum impacto significativo nesses cálculos”, diz a pesquisadora. Contextos de guerra, como o vivenciado atualmente, alteram a produção e o comércio agrícola, colocando em posição sensível países que dependem mais de importações.


Diretor executivo no IPAM, André Guimarães projeta o potencial do Brasil no cenário global. “Com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], universidades de Agronomia e outros centros de pesquisa, passamos de um país importador para sermos um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas do mundo, em 50 anos. Deveríamos estar usando essa capacidade científica para ampliar nossa produção de alimentos e posicionar o Brasil como parte da solução desse desafio futuro”.