Golpe na Memória
O Senado aprovou a Lei PLS no. 146 de 2007, dispositivo que autoriza destruição de documentos originais depois de digitalizados, o que é um atentado a segurança jurídica e a memória do país, diz o especialista em informação digital Charlley Luz, docente do curso de pós-graduação em Gestão Arquivística da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo).
O Projeto de Lei do Senado – PLS nº 146 de 2007 foi aprovado nesta última semana turbulenta em Brasília (11 a 14/06), ele estava em pauta no final do ano passado, retirado das gavetas pelo senador Magno Malta. Haviam tentado votá-lo na plenária de final de ano, porém houve pedido para que voltasse à discussão e recebeu emendas, o que o tornou um projeto que deve ser debatido também na Câmara Federal. O projeto autoriza a destruição do patrimônio documental brasileiro, conta o professor Charlley. “Pelo texto aprovado pelos senadores, está autorizada a destruição de documentos originais depois de digitalizados em ambiente autentificador”.
Segundo Charlley, o projeto estabelece critérios sobre a digitalização, o armazenamento em meio eletrônico, óptico ou digital, e a reprodução dos documentos particulares e públicos arquivados. “Vale dizer que já temos uma base normativa nacional, que envolve o modelo SIGAD (Sistema Informatizado de Gestão de Documentos) e RDC-Arq (Repositório Digital Confiável), criado pelo CONARQ (Conselho Nacional de Arquivos) e que deve ser aplicado e está ocorrendo na prática (ainda não que da forma que deveria) no governo federal”. Ainda segundo o professor, estudiosos da área acreditam que deveria ser discutida a viabilidade deste modelo normalizado nacionalmente, gerado pelo esforço técnico de especialistas destacados da área, fruto de anos de trabalho coletivo e científico ao invés deste PLS 146/2007 que preconiza uma tecnologia defasada.
Para o especialista, o mais perigoso para nossa história, que é o compromisso arquivístico para com a autenticidade e confiabilidade, é a parte que dispões sobre a destruição de documentos originais. O projeto autoriza que após a digitalização e armazenamento em mídia óptica ou digital autenticada, os documentos em meio analógico poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro processo adequado que assegure a sua desintegração, lavrando-se o respectivo termo de eliminação. “Isto é um ataque e um atentado ao patrimônio documental brasileiro, pois sabemos que a digitalização gera um Representante Digital que nunca será igual ao documento original por motivos diplomáticos e de garantia histórica e da verdade”.
Para isso, a lei muda exatamente na validação não-científica de que os documentos digitalizados e armazenados em mídia ótica ou digital autenticada, bem como as suas reproduções terão o mesmo valor jurídico do documento original para todos os fins de direito, explica o professor. “Neste momento devemos lembrar de questões tecnológicas que podem interferir na garantia de autenticidade, afinal a tecnologia não é infalível, está aí toda a dúvida gerada nas apurações de urnas eletrônicas nas eleições, por exemplo”.
Charlley explica que a Lei também estabelece uma reserva de mercado para aquelas empresas que trabalham com softwares e plataformas para a gestão documental. Ela afirma que a digitalização de documentos e o armazenamento em mídia óptica ou digital autenticada serão realizados por empresas e cartórios devidamente credenciados junto ao Ministério de Estado da Justiça. “Este tipo de reserva funcionaria bem num ecossistema estável e com instituições sólidas e as regras do jogo clara e requisitos arquivísticos definidos. Da forma como está é só cadastrar no ministério que está liberada a exploração do serviço, sem critérios técnicos algum. Novamente a memória nacional sob o critério da seleção da industria da digitalização”.
O projeto de lei propõe ainda criar um novo mercado para os cartórios, que deverão autenticar as reproduções realizadas por particulares, nos termos da lei, a fim de produzir efeitos perante terceiros, podendo ser solicitada e enviada eletronicamente, mediante a utilização de assinatura digital certificada, no âmbito da infra-estrutura do ICP-Brasil, pelo serviço de registro de títulos e documentos que detiver a mídia em seu acervo ou a efetivou.
A lei ainda determina, ainda, que o Poder Executivo, no prazo de 90 (noventa) dias, regulamentará a lei, indicando os requisitos para o credenciamento das empresas e cartórios autorizados a proceder à digitalização dos documentos, assim como os cartórios encarregados da autenticação e conservação das mídias ópticas ou digitais e autenticação de suas reproduções.
O Conselho Nacional de Arquivos-Conarq, órgão da administração pública federal encarregado de formular a política nacional de arquivos, reiterou o pedido de arquivamento do projeto e emitiu nota técnica criticando a iniciativa. O documento do Conarq alerta que o PLS 146/2007 “possui equívocos ao alterar importantes dispositivos legais”, pois extingue “a função genuína de ‘prova’ e/ou ‘testemunho’ de grande parte dos documentos arquivísticos”
Se o PLS 146/2007 for aprovado na Câmara de Deputados, sem modificações, os documentos, em suporte de papel, produzidos e recebidos pela administração pública federal poderão ser substituídos por sua representação digital. O projeto inviabiliza na prática a chamada análise forense ou diplomática forense, em casos de contestação de veracidade, impugnação e/ou denúncias de adulteração e falsificação de documentos.
O PLS 146/2007 também autoriza esses procedimentos em relação aos documentos privados, seja de empresas ou pessoais, indicando diretamente os órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e as entidades integrantes da administração pública indireta das três esferas de poder político. O cenário não é nada animador, diz o especialista. “A eliminação de documentos tidos como evidência e prova teria grande impacto. Nas atuais investigações de corrupção, por exemplo, poderão cair num sem fim de recursos jurídicos questionando a autenticidade e fidedignidade das provas documentais digitalizadas apresentadas aos tribunais”.
Charlley esclarece que apesar de querer economizar com o papel, o próprio Conarq alerta que a preservação e acesso de longo prazo dos documentos digitalizados implica na previsão de planejamento e investimentos constantes, assim como custos elevados com a manutenção do ambiente tecnológico ao longo dos anos. Ou seja, a economia – grande argumento dos senadores preocupados com o erário estatal – pode sair pela culatra, com milhões em investimentos em plataformas digitais que podem apagar com parte da memória da sociedade brasileira com uma simples “tecla errada”.